quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Natal de outros

Natal fora da casa de meu Pai,
Longe da mangedoira onde nasci.
Neve branca também, mas que não cai
Na telha vã da infância que perdi.


Filosofias sobre a eternidade;
Lareiras de salão, civilizadas;
E eu a tremer de frio e de saudade
Por memórias em mim quase apagadas…


Miguel Torga

De Natal

Meu menino Jesus,
quem te deu a casaquinha?
Foi minha avó Santa Ana
com botões de prata fina

+

Está a chover e a nevar
e a raposa no quintal
a fazer a camisinha
para o dia de Natal

Popular - de Babe, claro.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Amor de Natal

Das aventuras já vividas de Natal
esta foi para mim a mais bonita
havias chegado há pouco a Portugal
tua beleza cegou logo a minha vista.

Depressa serenaste as dores da paixão
que nos meus olhos notavas claramente
como era suave o toque fino da tua mão
e quente o fogo que se ateou de repente!

E pelo arraial e naquele passeio,
ó doce C., inspiradora deste poema,
pelo teu amor e beleza eu anseio
meu anjo querido, minha pobre pequena!

E o meu olhar cada vez mais limpo
aquele olhar virginal que nele batia
chamava por mim para o nosso ninho
como um sonho lindo que ambos nutria!

Já sozinhos vigiados pelas estrelas
meu amor eterno te queria mostrar
assim guiados pela luz cintilante delas
teus lábios ardentes queria beijar!

Depois, ó doce C., minha boa amada,
inconscinetes dessa felicidade breve
quando enrolados já na macia palha
cantámos, sorrimos, rebolámos na neve!

Ó doce C, flor airosa da minha janela
que enfeita beirados, aí fizeste-me jurar
que por este amor, minha flor singela,
teu nome eternamente havia de chamar!

Se esta paixão já foi realidade
vivida, sem queixume algum deixar,
não temas em procurar a felicidade
porém recorda quem te ensinou a amar!

Eu recordarei bem o teu perfume suave
do corpo e da alma envolta em mistério
do meu coração deixei-te uma chave
nem que me visites já no cemitério!


Jorge Marrão
em Babe, a seguir ao Natal de 1983

Gaitada

Tiro liro liro
tiro liro liro
fole de gaiteiro
comprei uma gaita
fiquei sem dinheiro

Fiquei sem dinheiro
mas fiquei contente
toca minha gaita
p'ra tod'esta gente
tiro liro liro
tiro liro liro

P'ra tod'esta gente
toca minha gaita
livre d'arrelias
toca no labor
festas e romarias
tiro liro liro
tiro liro liro

Festas e romarias
toca minha gaita
o pulmão não cansa
gosto da gandaina
todo o povo dança
tiro liro liro
tiro liro liro

Todo o povo dança
olha p'ro velhote
esperava a morte
com esta gaitada
tirou o capote
tiro liro liro
tiro liro liro

Tirou o capote
olha a ti Maria
como ela pula
tinha dor ciática
gaita santa cura
tiro liro liro
tiro liro liro

Gaita santa cura
vai de povo em povo
de som elegíaco
aliviando dores
esta minha gaita
melhor que doutores
tiro liro liro
tiro liro liro

Melhor que doutores
o fole é de pele
e haja pulmão
à frente as palhetas
atrás o bordão
tiro liro liro
tiro liro liro

Atrás o bordão
para se tocar
haja homem de beiço
fino de ouvido
e ágil de mãos
tiro liro liro
tiro liro liro

Jorge 1986

sábado, 28 de novembro de 2009

Mulher

Ergue-se, luta e sorri ao nosso lado
Como a cana suporta a espiga já madura
E apetecida…
É delicado tocar-lhe, mas retribui-se com ou sorriso.

JM

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Inocência

Dedico aos jovens palestinianos e judeus.
Foi escrita, esboçada, após ter lido
uma entrevista de um médico palestiniano exilado.


Os melros acasalam e os tordos queremos imitar.
Há ninhos e ovos frescos nos silveiros
E espreitamos as fêmeas a chocar.
Passamos pela sebe entrelaçada, ainda o sol aquece.
De mão dada com a tarde caminhamos:
O sol cederá lugar no trono, breve, à irmã lua.
Olhamos intensamente e sorvemos, livres, o derradeiro sol
E o prateado luar nascente.

Foi para isso que os deuses nos fizeram.

Nesse tempo,
Da guerra não conhecíamos, ainda, o horror,
Nem dos massacres em parte incerta.
Sabíamos apenas dos melros, dos tordos, dos ninhos
E ovos.
Essa paz queríamos imitar.

JM 1982

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Cesário Verde

Quando te conheci
Tinhas uma banca na praça
E vendias fruta de mil cores,
Pedi pêssegos e achaste graça
Por ter pedido algumas flores.

Comprei-as descuidado
Sem saber a quem as ofertar,
Esperando que alguém as pudesse merecer,
Mas o peso abonado deu para entender
Que a ti as flores havia d'entregar.

Experimentei também as uvas,
Enquanto tuas faces cor de ginja sorriam
E distraído apreciava as tuas madeixas
Que com a cor dos olhos condiziam:
Grandes, agudos e ovais como as ameixas.

E se pudesse comprar fiado
P'ra satisfazer os caprichos da ansiedade,
Comprava-te toda a fruta da banca,
Arrumavas e escrevias: "Fechado",
P'ra passear contigo pela cidade.

Já dava na Sé o meio-dia,
E tu, que prometeras, sem aparecer,
Outras dardejavam-me com olhares
E passavam velozes, sem vagares
P'ra perguntar o que estava a acontecer.

De súbito entravas na igreja,
Sem saber quem disso havia curado,
Trazias o teu corpo de fruta perfumado
E o tal ramo de flores mimosas
Que às dardejantes fazia inveja.

Se ao menos fosse verdade...
Mas não! Que pensamento o meu?
Batia a uma hora e eu ali especado
A ser cada vez mais dardejado,
À espera daquilo que nunca aconteceu.

Marrão 82

O Pomar de Barreiros

Feliz aquele que planta o pomar
Na esperança de colher os frutos,
Ou que alguém os venha a colher.
Feliz quem cava, monda e rega.
Feliz quem poda, limpa e enxerta
Com vontade de melhorar as castas.

Eis então chegada a Pimavera:
Gomos, folhas, flores e frutos tenros
Brotam como se a vida acabasse de nascer
E ficasse assim até à eternidade...
No silêncio quente da encosta soalheira.
A imensidão de horizonte que banha
O Pomar de Barreiros e a nós,
No fim dum entardecer setembrino,
Torna-nos donos do mundo, a ti e a mim:
Tu colhes, no meio das macieiras, maçãs
Rubras, doces, perfumadas e reboludas;
Eu aprecio os teus gestos e aceito
Atentamente.

Foi assim à beira do poço,
Debaixo da sombra dos salgueiros,
Que falámos de sonhos por sonhar...
Esquecemos que havia passado e futuro.
O Pomar de Barreiros é maior
Que o Éden, pois ninguém ousou
Interromper a nossa colheita,
Nem proibir o que quer que fosse.
Podíamos ali, naquele idílico lugar,
Sem restrições, comer e saborear
Inocentemente.

Oh! quão felizes fomos eu e tu, Eva!
Mais do que quem plantou,
Cavou, mondou e regou;
Mais, mas muito mais felizes
Do que o podador e o enxertador,
A quem muita estima dirigimos.
Mas fomos nós, eu e tu, a colher os frutos
Do Pomar de Barreiros, por isso
Sentimo-nos mais felizes do que os deuses.


JM 87


Elegia II

Ao Manuel Inácio,
Falecido tragicamente em 2 de Setembro de 1986

Regressado a ti, terra natal,
Depois de algum tempo de ausência,
Quero, como é costume antigo
E legados dos nossos antepassados,
Aproveitar para, mais uma vez
Em campo santo, prestar homenagem
A um amigo que só um instante
Nos separa.

Quão cedo quiseram tragicamente
Roubar-te do convívio?
Cedo quiseram arrefecer o fulgor
Da auréola dos vinte e três anos,
Com a dádiva feita à terra fria?
Mas se, por um lado, dói esta partida,
Que ausência sempre dor causou,
Não é menos real teres vantagem
Sobre nós que aqui na terra obramos:
Gozas já das delícias do além,
Enquanto nós ainda esperamos.
Amen.

JM

Babe, 12 de Julho 1987

Elegia I

Vinha curvo pela tarde caminhando
Por um carreiro umbroso, escuro.
Os sinos em acordes iam tocando

Talvez por um amigo ou familiar
Que foi chamado a contas com o eterno,
Ainda moço, ao derradeiro lar.

E nesse agre silêncio de morte
Que atravessava frio corpo e alma,
Lastimava em vão de quem fosse a sorte...

Que triste ter de entregar a vida!
Pior é que ainda nos surpreende,
Desde imemoriáveis tempos garantida.

É que a surpresa não está na sombra,
Mas nela: ensombra uns e colhe outros,
E ninguém é senhor da sua hora.

Marrão 86

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Em Bragança

Chegou o frio.
Chegou a hora do aconchego, dos agasalhos.
É tarde. É um entardecer especial.
Queremos festejar o amor,
Porque os primeiros flocos de neve
Escorregam nas vidraças e silenciam as ruas.
Em breve estarão cobertas de neve
E enlaçados desprezamos o frio,
Bebemos, brindamos e cantamos:

Em Bragança a neve cai pausadamente
E nós amamo-nos sem cessar.

Chegou o frio.
Chegaram contínuas noites lentas
Que favorecem o amor.
É noite. Esta é uma noite especial.
Queremos festejar o amor
Enquanto acumula a neve nos telhados.
Os carros já guinam e derrapam
E enquanto nos enlaçamos
Sonhamos que os anjos cantam:

Em Bragança a neve cai pausadamente
E nós amamo-nos sem cessar.


Chegou o frio.
Já é manhã de um novo dia breve.
É dia. Este é um dia especial.
Queremos passear pela cidade,
Da estação à cidadela e olhar
O contorno suave dos montes,
Festejar o amor pelas ruas lisas
E inscrever o nosso amor na neve.
Entramos num café e em coro cantam:

Em Bragança a neve cai pausadamente
E nós amamo-nos sem cessar.

Marrão 1980

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Vem cá


Vem cá da margem contemplar o rio
E amor façamos só um instante
Envolvidos por raios de sol queimante
Tornemos o decurso menos sombrio.


Mergulhemos a clara mente nessa luz
E nossos pés em clara e pura linfa
Que é do leito só uma vez
Tal como a breve vida.


Tiremos nosso olhar do horizonte
Enquanto gozamos deste momento
Máximo prazer antes de a Caronte
Pagar negra viagem de tormento.


Se alguma lembrança tivermos
Que possa trazer passado
Deitemo-la calmamente ao leito,
Não importa que corra ou não corra.
Do mesmo modo, se algum indício houvermos
Do tempo que há-de correr não o fixemos,
Não importa que corra ou não corra,
Que o além nem dos deuses certeza é.


Por isso, querida, façamos amor
Na constância dos arbustos de agora
Que enfeitam largo e claro leito
Enquanto nós e a água corremos.


Marrão 82

Raízes

Corre-me nas veias a seiva
Dos nadas que a vida tem
A divina dor de parir
Duma mãe.

Dum pai
Os calos da enxada,
Ou da rabiça do arado,
Das mãos que espalham sementes:
Pétalas de Primavera, frutos de Verão,
Dos pés banhados em mosto
E por gosto, pai e mãe,
De nadas a vida se gera.

Dum filho
Esperança haja
Como num gomo de videira
Que a cada vinda do orvalho
E do sol desabrocha.
Haja tempo.
De nadas a vida se toca.

JM 87

Minhas ginjeiras

Vossa ramagem verdeja.

Minhas ginjeiras floridas
Minhas ginjeiras aladas
Minhas ginjeiras dobradas
Minhas ginjeiras de ginjas.

P'ro encanto dos meus olhos.

Minhas ginjeiras aladas
Minhas ginjeiras floridas
Minhas ginjeiras subidas
Minhas ginjeiras de ginjas.

Dos melros tenho inveja.

Minhas ginjeiras de ginjas
Minhas ginjeiras dobradas
Minhas ginjeiras colhidas
Minhas ginjeiras podadas.

Dos piscos, gaios e tordos.


Marrão 82

Cultiva

Cultiva o bem, meu amor, cultiva
Que é tão bela a vida.
Cada momento que por nós passar
Vivamos e amemos.

Não consultes os signos do zodíaco
Nem a sibila
Cujos sinais ambíguos quebram a vida
E o prazer do momento.

Do tempo não queiras saber futuro,
Nem o destino, nem a sorte;
Para que quando chegarmos ao rio escuro
Embarcar não nos custe.

Marrão 84

Ode à Fonte Megilde

Ó fonte de Megilde de puras águas
mais brilhantes do que astros,

Cada vez mais o Teu frontão granítico,
Solene, firme, só, s'envaidece

De tantas flores na cúpula ofertarem
Os caminhantes sequiosos de Ti.

Foi ao par de namorados que Vénus
Ingentemente aconselhou

Fruir deleitadamente, ó Fonte,
Tão viçosa e sã frescura

De tal modo que, seguindo Ceres,
Refrescou a ceifeira alegre

Que ceifava sob canícula ardente
Na seara loura, sobranceira.

De feição Teus regos de água
São querido de Silvanus

E o cordeiro tresmalhado encontra
Em Ti novo folguedo

Que divinas Naiades Te protejam
E continue por longo tempo

Fruindo assim gélidas e puras águas
Que saltitam brilhantes.

JM 1982

Pecado


Ergue a voz,
Ó homem, embriagado
De pecado
E o teu grito
Gere a revolta contra os deuses
Que o inventaram.


Uma luta
De realidades e impressões
No interior de cada um
Infinitas convulsões
De causas indefinidas
Que os deuses inventaram.


E eles a rir.
A rir nos celestiais céus
Ou cavernosos infernos
Gargalhadas de raios
Que te cegam.


Faz como os penedos:
Ergue-te
Que o pecado
É a indiferença.


JM 1980

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Murcharam

Soneto à moda antiga ….



Murcharam por agora as nossas flores
Não soubemos adubá-las nem regar
Como num bosque só há silvas a trepar
Assim como podem florescer amores?

Por isso a vida, amor, não tem sentido.
Melhor será baixar o pano da cena
Deste drama que nos rouba a vida amena,
Por especularmos sempre o que tem sido.

Murcharam para sempre nossos ramos?
Não sei. Se o regador não vai regar…
Melhor será os ramos secos podar.

Por isso a vida, amor, oh! breves enganos!
Que se diluirão na imensidão dos anos
E na alegria de cada breve acordar.

Jorge Marrão

Lameirica, lameirona

Lameirica, lameirona:
Lameiros, hortas e carreirões,
Freixos, negrilhos e silveiros,
Pombais brancos outros caídos,
Madessilva e caneleiros.

Lameirica, lameirona:
Giestas e estevas floridas,
Passarada em liberdade,
Ninhos nos galhos das árvores,
Vitelinhas no pasto e repasto,
Vacas puxando o carro e o arado,
Garotada a brincar.

Lameirica, lameirona:
Nascentes por todo o lado,
Namoros aqui e ali
Fontes e tanques gelados,
Pedregulhos multifacetados
Tantas saudades de ti.

Lameirica, lameirona..!

Jorge Marrão
1982

Na aula

Na aula, Liliana,
Desenhei nas carteiras do liceu
Olhares egípcios como o teu
Longe das matérias e do olhar azedo
Dos profes.


Na cidade, Liliana,
Desenhei na Praça da Sé e nos passeios
Os teus lábios velozes e a saliência dos seios,
Longe da turba e do olhar autoritário
Dos polícias.


Na romaria, Liliana,
Desenhei no pó seco do caminho
Perfis incertos e fugidios do teu corpinho,
Longe da procissão e do olhar condenável
Das beatas.


Em sonhos, Liliana,
Desenhei-te inteira e as tuas tranças
Eram baloiços que alimentavam s’peranças
Indiferentes às beatas, aos polícias e aos profes.

Hoje, Liliana,
Recordo…

Jorge Marrão

Poema iniciado numa aula em 1980, Liceu de Bragança.

Retocado anos depois, 1986?

Naquele tempo

Naquele tempo floriam os nabais.
O vento levantava-te as saias
E espargiam-se no amarelo garrido.
Depois espreitava-te entre os caules.
Depois não dávamos pela queda da tarde
Abrilenta, quente e borrifada pelo aguaceiro repentino …
E sorvíamos o odor da terra.
Depois vinham ecoando as badaladas das trindades
E os gados recolhiam fartos.
Depois sacudíamos as pétalas dos corpos.
Ao longe a penumbra dos montes caía
E entrávamos na noite.
Dormíamos e sonhávamos lentamente….
A memória é a vida.
E é tão bela
Como o entardecer de Abril
Na minha aldeia.

Jorge Marrão
1982

Alentejo

Alentejo:
Liso, loiro, longe.
Searas fartas, gado bravo.
Terra gretada e quente.
Dias longos e viajados.
Noites de insónia num quarto de pensão,
Entre gente boa e amiga
Que vai no meu coração.

Colinas suaves,
Aqui e ali uma depressão,
Montado, olivais, vinhedos.
Sonhos furtivos.
Nocturnos segredos!
Passo, calo
E acelero que tenho pressa.


JM 2007