quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Em Bragança

Chegou o frio.
Chegou a hora do aconchego, dos agasalhos.
É tarde. É um entardecer especial.
Queremos festejar o amor,
Porque os primeiros flocos de neve
Escorregam nas vidraças e silenciam as ruas.
Em breve estarão cobertas de neve
E enlaçados desprezamos o frio,
Bebemos, brindamos e cantamos:

Em Bragança a neve cai pausadamente
E nós amamo-nos sem cessar.

Chegou o frio.
Chegaram contínuas noites lentas
Que favorecem o amor.
É noite. Esta é uma noite especial.
Queremos festejar o amor
Enquanto acumula a neve nos telhados.
Os carros já guinam e derrapam
E enquanto nos enlaçamos
Sonhamos que os anjos cantam:

Em Bragança a neve cai pausadamente
E nós amamo-nos sem cessar.


Chegou o frio.
Já é manhã de um novo dia breve.
É dia. Este é um dia especial.
Queremos passear pela cidade,
Da estação à cidadela e olhar
O contorno suave dos montes,
Festejar o amor pelas ruas lisas
E inscrever o nosso amor na neve.
Entramos num café e em coro cantam:

Em Bragança a neve cai pausadamente
E nós amamo-nos sem cessar.

Marrão 1980

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Vem cá


Vem cá da margem contemplar o rio
E amor façamos só um instante
Envolvidos por raios de sol queimante
Tornemos o decurso menos sombrio.


Mergulhemos a clara mente nessa luz
E nossos pés em clara e pura linfa
Que é do leito só uma vez
Tal como a breve vida.


Tiremos nosso olhar do horizonte
Enquanto gozamos deste momento
Máximo prazer antes de a Caronte
Pagar negra viagem de tormento.


Se alguma lembrança tivermos
Que possa trazer passado
Deitemo-la calmamente ao leito,
Não importa que corra ou não corra.
Do mesmo modo, se algum indício houvermos
Do tempo que há-de correr não o fixemos,
Não importa que corra ou não corra,
Que o além nem dos deuses certeza é.


Por isso, querida, façamos amor
Na constância dos arbustos de agora
Que enfeitam largo e claro leito
Enquanto nós e a água corremos.


Marrão 82

Raízes

Corre-me nas veias a seiva
Dos nadas que a vida tem
A divina dor de parir
Duma mãe.

Dum pai
Os calos da enxada,
Ou da rabiça do arado,
Das mãos que espalham sementes:
Pétalas de Primavera, frutos de Verão,
Dos pés banhados em mosto
E por gosto, pai e mãe,
De nadas a vida se gera.

Dum filho
Esperança haja
Como num gomo de videira
Que a cada vinda do orvalho
E do sol desabrocha.
Haja tempo.
De nadas a vida se toca.

JM 87

Minhas ginjeiras

Vossa ramagem verdeja.

Minhas ginjeiras floridas
Minhas ginjeiras aladas
Minhas ginjeiras dobradas
Minhas ginjeiras de ginjas.

P'ro encanto dos meus olhos.

Minhas ginjeiras aladas
Minhas ginjeiras floridas
Minhas ginjeiras subidas
Minhas ginjeiras de ginjas.

Dos melros tenho inveja.

Minhas ginjeiras de ginjas
Minhas ginjeiras dobradas
Minhas ginjeiras colhidas
Minhas ginjeiras podadas.

Dos piscos, gaios e tordos.


Marrão 82

Cultiva

Cultiva o bem, meu amor, cultiva
Que é tão bela a vida.
Cada momento que por nós passar
Vivamos e amemos.

Não consultes os signos do zodíaco
Nem a sibila
Cujos sinais ambíguos quebram a vida
E o prazer do momento.

Do tempo não queiras saber futuro,
Nem o destino, nem a sorte;
Para que quando chegarmos ao rio escuro
Embarcar não nos custe.

Marrão 84

Ode à Fonte Megilde

Ó fonte de Megilde de puras águas
mais brilhantes do que astros,

Cada vez mais o Teu frontão granítico,
Solene, firme, só, s'envaidece

De tantas flores na cúpula ofertarem
Os caminhantes sequiosos de Ti.

Foi ao par de namorados que Vénus
Ingentemente aconselhou

Fruir deleitadamente, ó Fonte,
Tão viçosa e sã frescura

De tal modo que, seguindo Ceres,
Refrescou a ceifeira alegre

Que ceifava sob canícula ardente
Na seara loura, sobranceira.

De feição Teus regos de água
São querido de Silvanus

E o cordeiro tresmalhado encontra
Em Ti novo folguedo

Que divinas Naiades Te protejam
E continue por longo tempo

Fruindo assim gélidas e puras águas
Que saltitam brilhantes.

JM 1982

Pecado


Ergue a voz,
Ó homem, embriagado
De pecado
E o teu grito
Gere a revolta contra os deuses
Que o inventaram.


Uma luta
De realidades e impressões
No interior de cada um
Infinitas convulsões
De causas indefinidas
Que os deuses inventaram.


E eles a rir.
A rir nos celestiais céus
Ou cavernosos infernos
Gargalhadas de raios
Que te cegam.


Faz como os penedos:
Ergue-te
Que o pecado
É a indiferença.


JM 1980

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Murcharam

Soneto à moda antiga ….



Murcharam por agora as nossas flores
Não soubemos adubá-las nem regar
Como num bosque só há silvas a trepar
Assim como podem florescer amores?

Por isso a vida, amor, não tem sentido.
Melhor será baixar o pano da cena
Deste drama que nos rouba a vida amena,
Por especularmos sempre o que tem sido.

Murcharam para sempre nossos ramos?
Não sei. Se o regador não vai regar…
Melhor será os ramos secos podar.

Por isso a vida, amor, oh! breves enganos!
Que se diluirão na imensidão dos anos
E na alegria de cada breve acordar.

Jorge Marrão

Lameirica, lameirona

Lameirica, lameirona:
Lameiros, hortas e carreirões,
Freixos, negrilhos e silveiros,
Pombais brancos outros caídos,
Madessilva e caneleiros.

Lameirica, lameirona:
Giestas e estevas floridas,
Passarada em liberdade,
Ninhos nos galhos das árvores,
Vitelinhas no pasto e repasto,
Vacas puxando o carro e o arado,
Garotada a brincar.

Lameirica, lameirona:
Nascentes por todo o lado,
Namoros aqui e ali
Fontes e tanques gelados,
Pedregulhos multifacetados
Tantas saudades de ti.

Lameirica, lameirona..!

Jorge Marrão
1982

Na aula

Na aula, Liliana,
Desenhei nas carteiras do liceu
Olhares egípcios como o teu
Longe das matérias e do olhar azedo
Dos profes.


Na cidade, Liliana,
Desenhei na Praça da Sé e nos passeios
Os teus lábios velozes e a saliência dos seios,
Longe da turba e do olhar autoritário
Dos polícias.


Na romaria, Liliana,
Desenhei no pó seco do caminho
Perfis incertos e fugidios do teu corpinho,
Longe da procissão e do olhar condenável
Das beatas.


Em sonhos, Liliana,
Desenhei-te inteira e as tuas tranças
Eram baloiços que alimentavam s’peranças
Indiferentes às beatas, aos polícias e aos profes.

Hoje, Liliana,
Recordo…

Jorge Marrão

Poema iniciado numa aula em 1980, Liceu de Bragança.

Retocado anos depois, 1986?

Naquele tempo

Naquele tempo floriam os nabais.
O vento levantava-te as saias
E espargiam-se no amarelo garrido.
Depois espreitava-te entre os caules.
Depois não dávamos pela queda da tarde
Abrilenta, quente e borrifada pelo aguaceiro repentino …
E sorvíamos o odor da terra.
Depois vinham ecoando as badaladas das trindades
E os gados recolhiam fartos.
Depois sacudíamos as pétalas dos corpos.
Ao longe a penumbra dos montes caía
E entrávamos na noite.
Dormíamos e sonhávamos lentamente….
A memória é a vida.
E é tão bela
Como o entardecer de Abril
Na minha aldeia.

Jorge Marrão
1982

Alentejo

Alentejo:
Liso, loiro, longe.
Searas fartas, gado bravo.
Terra gretada e quente.
Dias longos e viajados.
Noites de insónia num quarto de pensão,
Entre gente boa e amiga
Que vai no meu coração.

Colinas suaves,
Aqui e ali uma depressão,
Montado, olivais, vinhedos.
Sonhos furtivos.
Nocturnos segredos!
Passo, calo
E acelero que tenho pressa.


JM 2007