quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Romance para o Lennon

Faz frio em Nova Iorque - em Bragança também
tristes novas anunciam - por esse mundo além.
Ninguém quer acreditar - na infâmia e malvadez
nem no gesto tão cruel - contra a vida singular.
Ninguém quer acreditar - mas já calaram o amor
que somou tantos sons - e harmonia ao universo.
Mataram-no cantam aedos - ali jaz sob a neve
mas não morreu sua alma - só mataram o corpo breve.
Dum golpe lhe sai uma flor - do outro uma rolinha
às costas traz a guitarra - a dar notas de harmonia.
O ódio e o amor juntaram-se - para assinalar o dia
ninguém quer acreditar - nessa tão triste notícia.
O amor plantado cresce - a cada lágrima vertida
que desliza pelos rostos - que por aí amam livres.
Anunciam novas tristes - por esse mundo além
em Bragança fará frio - em Nova Iorque também...

JM 10/12/1980

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Teixeira de Pascoaes

A estrada nacional quinze serpenteia
o dorso fendido de Marânus
que firme aceitou que desenhassem
a passagem rumo a nordeste.

É como se a virgem serrana
transferisse para ali o calvário
e os murmúrios dos pinhais
chorassem os que tombam
nos reveses da marcha.

A lembrança e o o desejo
esculpem a saudade das curvas
e do casario espalhado pelo termo
com chaminés fumegantes
e talvez hipotéticos amantes
de poesia sorvam versos
espoliados da escola, das sebentas...

O Pessoa seca tudo! Não é ele,
é quem quer a ignorância.
Em cada viagem abraço Marânus
e tu por lá vagueias ungido
pela natureza.

JM 82

A Miguel Torga

Diz-me, ó grande poeta, que sal
tempera os teus versos?
Alguém que fite
a tua imagem cortante, esguia
e granítica;
que fala da terra quente e da terra fria
e solta límpidos pensamentos
imagina dom tão sublime em ti.

Puro, são claro e nu
com a dor de pensar sempre às costas
que abaula os quadris
e de metro sempre no bolso
para medir o que diz.

JM 82

Impor a quem os pôs...

À crise 83-85

Ai que chatice ouvir o político
a falar de administração
chatice a sério
é ver a derrocada do cidadão!

Ter de pagar imposto
privar a rapaziada da rambóia e da boémia
tão ao meu gosto
ter de pagar imposto
é de mau gosto
senhor vil e modesto!

Chatice é ver o destino da nação
orientado pela cobiça
e interesse promocional:
vota AD, PS cumpre
APU pela defesa de abril... etc., etc., & tal


E não é pelo que entendem que governam:
tão só pelo prazer d'impor
a quem os pôs a governar
para parir mais um imposto
até retroactivo se calhar

Karai! Isso é roubo disfarçado
daquilo que já nem se tem no bolso
que belo governar
que esta nação tem...

JM 85

Elegia IV

Ressoa murcha a ramagem dos pinhais
eu passo e ouso perguntar bem alto
por quem chorais?

Ressoam acordes dos ramos dobrados
eu passo e ouso perguntar bem alto
por quem a finados?

Ressoam as nuvens pelo céu enxuto
eu passo e ouso perguntar bem alto
por quem esse luto?

O eco passa não há quem responda
arrepia-me o silêncio sepulcral
firme grito à negra hedionda

Vai, corre teus caminhos desenfriada
mas saibas se passares à minha porta
olvidar tão bela vida amada.

JM 87

Elegia III

Senhor, erguem cruzes em todos os caminhos
onde outrora o povo confraternizava
os grandes esmagam os pequeninos
porque todos esqueceram a tua palavra.

E se algum queixume se levanta
contra os maus tratos e desumanidades
os poderosos bem lhes calam a garganta
injustiçando o mundo em nome de deidades.

Ó homens impiedosos e assassinos
indignos de pertencer ao escol da natureza
porque não cessais d'erguer cruzes pelos caminhos
e de agrilhoar do mundo a riqueza.

Erguei antes o vosso pesar e arrependimento
pela vossa insolência iníqua e desmedida
pois se não restar algum bondoso sentimento
caia sobre vós senhores pertinaz ira.

JM 87

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Agosto

Pelo São Lourenço
vai à vinha e enche o lenço.
Olha, já pendem cachos lustrosos
nestes dias que se gastam
festivos e vagarosos.

Convido-te a contemplar o pastel
e o nosso olhar encadeado
pelos bagos enxutos de moscatel
busca somente o recanto
secreto do amor.

Lá está ele,apontas tu:
sombra de videiras prenhes,
refúgio de perdigotos esquivos
entre as cepas e nós ali
a desejar que o dia
se suspenda nesse vórtice primordial
perfumado pelo odor da malvasia.

Caía sempre um bago no teu colo
e breve, lembras-te, seria mosto
e cada movimento da memória
e cada movimento do desejo
alenta a saudade desse agosto.


Marrão 82

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Inquietação

Respira-se e transpira-se,
não sei se nesse sopro
caberá o mundo. Peregrinos
caminham rumo à ventura.

Se não couber não faz mal
que não o quero só pra mim,
não o quero todo, só a parte
que me couber por sorte.

Mas acutelem-se que na raia
há homens sem passaporte
e cresce a raiva contra
a indiferença e o desnorte.

Ainda que vigieis a fronteira
nesta raia soltou-se a liberdade
e a turba faminta e desamada
não deixará de lutar.

Acautelem-se, acautelem-se
não deixeis o mundo à sorte
que os homens sem passaporte
não deixarão de lutar.

JM 87

Funaco

Pelo Santiago pinta o bago
e a meda cresce na eira.
A malha vem
e os medeiros erguem-se
como pináculos de catedrais
e nós brincamos no funaco.
Aos mais pequenos, inocentes ainda,
dizemos que não entrem,
que vem o ronco, e fogem.
Nós ficamos atónitos na palha
odorífica e quente, como um bafo
genesíaco e longínquo
que alimenta a eternidade.


Marrão 82

quarta-feira, 3 de março de 2010

Dança

O movimento programado,
multiforme e colorido,
sustenta a leveza do gesto
rápido,tenso,ágil e terno.

Os corpos tocam-se e separam-se
na ansiedade de cumprir o belo
e procuram o ritmo certo,harmonioso
e intenso como o olhar.

Enrolam-se e desenrolam-se
e erguem-se na rotação certa,
como dois inventos do porvir,
segundo uma lei física qualquer.

Ritmos variados ondeiam
e preenchem os recantos do universo.
Os corpos param e ficam encaixados,
suspensos no espaço e no tempo.

JM

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Ode a Joaquim Agostinho

Que palmas, que louvores
merece aquele que rola,
trepa, sua e vence;
mas num instante, por terra,
homem e bicilcleta
são encontrados na ravina,
ou imóveis na valeta?
Ganha-se a fama, lá vai a vida....

A trezentos metros da meta
perde-se e ganha-se.
Basta um cão, um gesto, um revés!
Na planície tudo ficou
mais difícil do que em d'Huez,
em Cangas ou na caseira Torre.
Mas meninos, adultos e velhos
felicitam-te com bandeirinhas.

A trezentos metros da meta
perde-se e ganha-se.
Nas serras os galhos abanam
e as águas rugem frescas;
e tu pedalas encosta acima.
Esperas, humilde, por Poulidor
e Merckx que enaltecem a vitória:
beijos e palmas ao vencedor.

A trezentos metros da meta
perde-se e ganha-se.
Por todos os lugares o público
ladeia as ruas engalanadas
e tu passas de pedaleira
pesada rasgando alcatrão e pavé:
leal, lutador e ladeado
por Zoetemelk, Hinault, Thévenet...

A trezentos metros da meta
perde-se e ganha-se.
Agora regressas a casa
e os campos em Maio murcham
e lamenta-se o fado português
apesar das palmas desde Lisboa
a Torres e à tua Silveira
onde tens repouso em boa hora.

Que palmas, que louvores
merece aquele que rola,
trepa, sua e vence.
Cedo passaste nos Campos Elíseos!
Os deuses ficaram de olho em ti,
mas o fado é indiferente ao merecimento.
Todavia, é clássico, os deuses chamam
bem cedo os que mais amam.

JM 1984

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Brinquedo

Tive outrora um brinquedo
simples hoje bem apetecido
sem algum medo corei ao vê-lo
por ser tão luzente e tão polido.

Banhavam-no laivos de inocência
como um burro calmo e velho
não tinha de hoje a consciência
e foi-se-me sem querer o brinquedo.

Gastou-se. O seu brilho perene e dourado
é relíquia hoje.
Ah brinquedo tantas vezes ansiado
recordação latente do longe.

JM 87

Música

A realidade transformada
em sons que compassam
cada bater do coração
e de nota em nota
busca imprevista canção.

Agora mesmo ouvimos
os acordes iniciais
do Hotel Califórnia
e procuramos clandestinos
roubar horas ao dia.

Lembras-me aquela máquina
do salão de jogos junto ao Liceu,
refúgio nos furos,
e a moeda na ranhura mágica
já anuncia os sons futuros.

Ergues-te e o espelho
dá-me as melodias do teu corpo
húmidas, quentes, evaporadas.
Vivemos assim neste sopro
como num conto de fadas.

Jorge Marrão
22/01/2010

Feito enquanto os alunos do 8º B faziam composição. Prometi-lhes que escreveria também. Saiu este.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Fraga da Corvaceira

Espero na fraga e avisto a leveza
dos pássaros, a dureza das pedras,
o rumor das águas, a sombra do vale,
as curvas da estrada.

O contorno crepuscular dos montes
exala perfumes multiplicados
pelos nadas que me visitam,
mas não os posso agarrar.

Imagino-me sentado a contemplar
a flexibilidade dos vimes
arqueados sobre as águas
que descerão até ao infinito...

E, da gruta da fraga, o ecoar
dos murmúrios das mouras encantadas,
como nas lendas ditas, à espera
da palavra mágica, fascina-me.

Mas não ouso entrar porque tenho
encontro marcado com a minha Circe.
Espero-a aqui na fraga e sei que virá
saltitando de nuvem em nuvem.

Descerá num raio de sol restante
e juntos passaremos, fraga, ficarás tu
por cá a olhar a estrada
adormecida pelo ribeiro cantante.

JM

Este surgiu de uma brincadeira entre amigos. Combinámos fazer versos a sítios da aldeia. Sempre me fascinou a gruta da Fraga da Corvaceira, lugar onde os corvos faziam os nihos. Está situada num vale junto ao ribeiro da Sapeira. De um lado do vale a fraga, do outro, na parte soalheira, a estrada. Foi iniciado na Adega do António Centeno. Histórias, copos, noites....Não é o original. Talvez seja de 1980/81, mas foi retocado várias vezes até 85?, altura que tinha tempo livre, lia, ecrevia, cinema, encontros e desencontros... A Circe também era outra.

Fidalguinha afidalgada

A umas meninas do Liceu de Bragança:

As meninas, menininhas
das meninices, ameninadas
- ai não me toques que me desafinas -
são pobres, tristes, vadias
e meninas bem mimadas!

Lá vão elas ao cafezinho,
bem vestidas à moderna
um vistoso macacão
mostrando as curvas da perna
sempre com ar mui chochinho!

Tomando o seu carioca
- e o nosso garotinho -
a carteira coitadinha
com quatro tostões no fundo
ainda dão p'ra uma chuchinha!

E aquela que veio da aldeia!
Já não a conheces?
Olha que está mudada
parecia uma ciganinha
e agora anda tão pintada!

E a da cidade!Deixa-me olhar:
ela será fidalguinha
ou fidalga afidalgada?
Nota-se pelo andar
que anda preocupada!

Rapaziada que risota!
Temos de afidalgar nós também.
Arranjar novos adereços
para entrar na peça e toca
a engatar bem, bem..!

Bragança, Abril de 1979

Terra mãe

A magia da charrua
de aguilhada na mão
rasga a terra dura
entoa uma canção.

De mão na enxada
o amor não tem preço
e à sombra da tapada
dorme a criança no berço.

Ó aldeia além-Sabor
lá no alto de branquinho
nosso povo acolhedor
dando alma pão e vinho.

Das leiras amanhadas
à malhada de Agosto
rapazes e raparigas
trazem sorriso no rosto.

Raparigas de mi terra
como elas não há igual
são raianas são da serra
cantinho de Portugal.

Vamos à praça a bailar
a jota, o picado, o malhão
dá recados de pasmar
mas é de bom coração.

JM

Esta pertence a um caderno de apontamentos que levei numa viagem a Stuttgart, Alemanha (naquela altura RFA) Julho/Agosto de 1981. Lembrei-me do contraste da Europa industrializada, neblina de gases e tudo...e do meu universo. Excitva-me a Europa, mas realmente o meu universo era maior, mais real, mais eufórico, mais livre, mais qualquer coisa que não sabia explicar. Desses apontamentos transcrevo: "Vinha para ser emigrante, mas a terra-mãe puxa-me e a minha Mãe, ó como sofres, segreda-me todas as noites que não".

Endecha

Caminho brando e leve
sobre a geada vidrada
ou escorrego na neve
em tarde acinzentada.

Apresso o passo e caio
contorcido em dores
traz, ó tempo, o Maio
em que brilham as flores.

Eu vivo descuidado
às surpresas do amor
quão mor for o cuidado
menor será futura dor.

Por isso muito sério
digo com grão empenho
e sem qualquer mistério
que quem ama é cego.

JM 82

Este é um exemplo de pastiche. Nas tardes longas da minha aldeia, nas noites com silêncios largos atravessados por paltitações, quimeras e rumores das palavras do mundo, achava que também lá tinha o meu lugar. Cada um de nós tem um lugar. O pior que podia acontecer era ser incomodado pelo berrar de um cordeirinho nascido, um carro de bois madrugador a chiar termo fora, ou o Nilo, o meu cão de latido vigoroso. Um dia quis fazer à maneira de Camões, conforme estava na selecta...usando os arcaísmos e tudo. Não ensina Aristóteles que poesia é imitação?