sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Brinquedo

Tive outrora um brinquedo
simples hoje bem apetecido
sem algum medo corei ao vê-lo
por ser tão luzente e tão polido.

Banhavam-no laivos de inocência
como um burro calmo e velho
não tinha de hoje a consciência
e foi-se-me sem querer o brinquedo.

Gastou-se. O seu brilho perene e dourado
é relíquia hoje.
Ah brinquedo tantas vezes ansiado
recordação latente do longe.

JM 87

Música

A realidade transformada
em sons que compassam
cada bater do coração
e de nota em nota
busca imprevista canção.

Agora mesmo ouvimos
os acordes iniciais
do Hotel Califórnia
e procuramos clandestinos
roubar horas ao dia.

Lembras-me aquela máquina
do salão de jogos junto ao Liceu,
refúgio nos furos,
e a moeda na ranhura mágica
já anuncia os sons futuros.

Ergues-te e o espelho
dá-me as melodias do teu corpo
húmidas, quentes, evaporadas.
Vivemos assim neste sopro
como num conto de fadas.

Jorge Marrão
22/01/2010

Feito enquanto os alunos do 8º B faziam composição. Prometi-lhes que escreveria também. Saiu este.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Fraga da Corvaceira

Espero na fraga e avisto a leveza
dos pássaros, a dureza das pedras,
o rumor das águas, a sombra do vale,
as curvas da estrada.

O contorno crepuscular dos montes
exala perfumes multiplicados
pelos nadas que me visitam,
mas não os posso agarrar.

Imagino-me sentado a contemplar
a flexibilidade dos vimes
arqueados sobre as águas
que descerão até ao infinito...

E, da gruta da fraga, o ecoar
dos murmúrios das mouras encantadas,
como nas lendas ditas, à espera
da palavra mágica, fascina-me.

Mas não ouso entrar porque tenho
encontro marcado com a minha Circe.
Espero-a aqui na fraga e sei que virá
saltitando de nuvem em nuvem.

Descerá num raio de sol restante
e juntos passaremos, fraga, ficarás tu
por cá a olhar a estrada
adormecida pelo ribeiro cantante.

JM

Este surgiu de uma brincadeira entre amigos. Combinámos fazer versos a sítios da aldeia. Sempre me fascinou a gruta da Fraga da Corvaceira, lugar onde os corvos faziam os nihos. Está situada num vale junto ao ribeiro da Sapeira. De um lado do vale a fraga, do outro, na parte soalheira, a estrada. Foi iniciado na Adega do António Centeno. Histórias, copos, noites....Não é o original. Talvez seja de 1980/81, mas foi retocado várias vezes até 85?, altura que tinha tempo livre, lia, ecrevia, cinema, encontros e desencontros... A Circe também era outra.

Fidalguinha afidalgada

A umas meninas do Liceu de Bragança:

As meninas, menininhas
das meninices, ameninadas
- ai não me toques que me desafinas -
são pobres, tristes, vadias
e meninas bem mimadas!

Lá vão elas ao cafezinho,
bem vestidas à moderna
um vistoso macacão
mostrando as curvas da perna
sempre com ar mui chochinho!

Tomando o seu carioca
- e o nosso garotinho -
a carteira coitadinha
com quatro tostões no fundo
ainda dão p'ra uma chuchinha!

E aquela que veio da aldeia!
Já não a conheces?
Olha que está mudada
parecia uma ciganinha
e agora anda tão pintada!

E a da cidade!Deixa-me olhar:
ela será fidalguinha
ou fidalga afidalgada?
Nota-se pelo andar
que anda preocupada!

Rapaziada que risota!
Temos de afidalgar nós também.
Arranjar novos adereços
para entrar na peça e toca
a engatar bem, bem..!

Bragança, Abril de 1979

Terra mãe

A magia da charrua
de aguilhada na mão
rasga a terra dura
entoa uma canção.

De mão na enxada
o amor não tem preço
e à sombra da tapada
dorme a criança no berço.

Ó aldeia além-Sabor
lá no alto de branquinho
nosso povo acolhedor
dando alma pão e vinho.

Das leiras amanhadas
à malhada de Agosto
rapazes e raparigas
trazem sorriso no rosto.

Raparigas de mi terra
como elas não há igual
são raianas são da serra
cantinho de Portugal.

Vamos à praça a bailar
a jota, o picado, o malhão
dá recados de pasmar
mas é de bom coração.

JM

Esta pertence a um caderno de apontamentos que levei numa viagem a Stuttgart, Alemanha (naquela altura RFA) Julho/Agosto de 1981. Lembrei-me do contraste da Europa industrializada, neblina de gases e tudo...e do meu universo. Excitva-me a Europa, mas realmente o meu universo era maior, mais real, mais eufórico, mais livre, mais qualquer coisa que não sabia explicar. Desses apontamentos transcrevo: "Vinha para ser emigrante, mas a terra-mãe puxa-me e a minha Mãe, ó como sofres, segreda-me todas as noites que não".

Endecha

Caminho brando e leve
sobre a geada vidrada
ou escorrego na neve
em tarde acinzentada.

Apresso o passo e caio
contorcido em dores
traz, ó tempo, o Maio
em que brilham as flores.

Eu vivo descuidado
às surpresas do amor
quão mor for o cuidado
menor será futura dor.

Por isso muito sério
digo com grão empenho
e sem qualquer mistério
que quem ama é cego.

JM 82

Este é um exemplo de pastiche. Nas tardes longas da minha aldeia, nas noites com silêncios largos atravessados por paltitações, quimeras e rumores das palavras do mundo, achava que também lá tinha o meu lugar. Cada um de nós tem um lugar. O pior que podia acontecer era ser incomodado pelo berrar de um cordeirinho nascido, um carro de bois madrugador a chiar termo fora, ou o Nilo, o meu cão de latido vigoroso. Um dia quis fazer à maneira de Camões, conforme estava na selecta...usando os arcaísmos e tudo. Não ensina Aristóteles que poesia é imitação?