terça-feira, 30 de abril de 2013

O coelho que vê passar os comboios

Lourenço naquela manhã de março estava radiante. O pai e a mãe faziam as malas para passar uns dias fora da cidade, visitar os tios e divertir-se em Vale das Casas. Ligada a ignição, o carro seguiu os sinais e rapidamente circulavam a toda a brida na A1 rumo ao norte. A certa altura, o pai deixou a A1 e encontrava-se a circular mais devagar numa estrada ladeada... de casario, estaleiros, comércios, sucatas. De hora a hora o pai ligava a estação de notícias e lá se iam anunciando medida atrás de medida drástica do governo, da troica, cada qual mais arrasadora que impacientavam a família.
- Este coelho!
Lourenço também não se continha de impaciência e perguntava constantemente porque iam por ali, caminho diferente e mais lento do que o habitual. O pai respondia invariavelmente:
- Para fugir às portagens. Mas não perguntes mais. Põe este CD e houve uma história.
O Vale das Casas era uma terra muito antiga. Ficava muito longe num vale encaixado entre duas enormes montanhas branquinhas no inverno e sempre muito verdejantes no verão. Pelo vale corria um rio de águas cristalinas que saltitavam alegres e puras entre rochas e árvores de grandes ramos. Era um sítio muito sossegado e preferido de melros, pintassilgos, gaios, a bem dizer, de toda a passarada, mas quem mais gostava desse lugar eram os coelhos.
Há muito, muito tempo havia por lá muitas famílias de coelhos. A família do Coelho Dourado tinha as suas tocas na encosta soalheira e facilmente iam petiscar às hortas dos agricultores de Vale das Casas. Arranjavam cenouras tenrinhas, nabos doces como o mel, e outras hortaliças fresquinhas para fazerem os seus manjares.
- Cuidado com os homens – avisava a Coelha Pedrês – temos de ter cuidado com eles se não metem-nos na panela!
- Se formos bem cedo, de manhãzinha, ninguém nos vê. – Respondia o vizinho, Coelho Malhado.
Coelho Dourado e Coelho Malhado eram dois velhos amigos e conheciam o vale como ninguém. Todos os outros coelhos, mesmo os mais novinhos lhe obedeciam pela sua bondade e sabedoria, pois eram muito cuidadosos e sempre dispostos a ajudar os outros.
Certo dia, os coelhos foram acordados por ruídos estranhos e estrondos enormes, mais fortes de que uma grande trovoada. Começaram todos a olhar para um lado e para o outro e avistaram máquinas e homens que manejavam picaretas e outras ferramentas que furavam a montanha. Era primavera. As plantas carregadas de flores eram arrancadas à força pelo poder das máquinas e dos homens. As que ficavam de pé entristeciam perante aquela terrível força. De repente, todos os animais do Vale das Casas se juntaram debaixo do grande castanheiro sobressaltados por novidade tão terrível. Até o lobo, rei daquelas paragens, sentado no alto de um penedo, se lamentava:
- Rasgam a nossa montanha. Que será do nosso vale? Das nossas árvores? Das nossas águas? Vale das Casas vai mesmo mudar. Vai ser um vale de lágrimas.
- Que diz, senhor Lobo Cinzento …? – Perguntou o Coelho Dourado ao lobo, muito admirado com a sua estranha bondade, que era muito temido por todos nas redondezas.
- Digo que os homens chegaram. Vão romper a encosta da montanha e construir uma linha de caminho de ferro que vem da grande cidade.
- Isso é mau? – Perguntou a Coelha Azulada aflita que trazia os seus seis coelhinhos perto de si.
- Depende …. É mau para nós …- Afirmou o lobo com olhar triste e sério.
Lobo Cinzento lembrava-se do que lhe haviam contado uns primos que moravam bem longe dali, do outro lado da montanha. Tinham cortado árvores, nascentes de água, caminhos… Já não podiam circular livremente pelos bosques. Então Coelho Dourado, que ouviu atentamente Lobo Cinzento, tomou a palavra e disse:
- Temos de fazer qualquer coisa.
- E que podemos nós fazer contra a força daquelas máquinas medonhas que revolvem montanhas e rompem rochedos enormes! – Exclamou aflito Coelho Malhado.
- Só vejo uma solução – dizia vagarosamente Coelho Dourado coçando os largos bigodes esbranquiçados – temos de ir falar com os homens.
- Falar com os homens …. – Sorriu e troçou a Raposa Matreira.
Raposa Matreira sabia bem que os homens não eram de confiança, nem de grandes falas, pelo menos para ela. Já muitas vezes a tentaram caçar, mas, como ela é muito matreira, ainda está viva. Sempre os vira com duas pernas a andar: tap, tap, tap, e caçadeiras a dar tiros: pumm, pumm, pumm, a dar tiros, sim, a todos os animais do vale e da montanha.
- Tem razão, Raposa Matreira. – Concordava Lobo Cinzento.
-Há-de haver um … não haverá um homem com quem se possa falar. Eu vou até ao estaleiro deles. Se nada fizermos tapam-nos os caminhos, cortam-nos as águas, as árvores. Como viveremos?
- Vejo que o senhor Coelho Dourado se quer meter mesmo numa panela…. – Gracejava Lobo Cinzento.
Coelho Dourado não ligou. Encheu-se de ânimo e lá foi. Os outros ficaram na encosta receando pelo mal que poderia acontecer ao coelho.
Finalmente Coelho Dourado chegou ao estaleiro das obras e dirigiu-se ao porteiro pedindo-lhe que queria falar com o chefe, o encarregado, o engenheiro. O homem foi muito simpático e indicou-lhe o caminho do gabinete do encarregado.
- Bom dia senhor encarregado.
- Bom dia …. Sr…. Coelho …
- …. Dourado.
O homem sorriu e ficou encantado com o coelho. Era mesmo dourado e observou atentamente a mancha cor de ouro que lhe percorria o lombo e seguia por entre as orelhas esguias até ao focinho.
- Que deseja?
- Bem … nós ouvimos todo este barulho, as máquinas e as árvores a cair …. a água turva no ribeiro …
- Sim, vamos fazer uma linha de comboios muito moderna por onde circularão comboios velozes.
- Claro, mas nós vivemos aqui há muito tempo, não achamos bem. Reunimos todos ali, debaixo do grande castanheiro, e queríamos fazer um pedido. – Disse o coelhinho.
- Então despache-se que tenho pressa. – Respondeu o encarregado com voz forte.
- Têm de nos deixar passagem para passarmos de um lado para o outro da montanha, para o vale, para…
Perante a aflição de Coelho Dourado, o encarregado fez um sinal com a mão e disse-lhe que esperasse ali que ia falar com o engenheiro para ver se seria possível atender o pedido dos animais.
Passado pouco tempo, o encarregado e o engenheiro aproximaram-se de Coelho Dourado e o e engenheiro perguntou:
- Então querem umas passagens para andarem de um lado para o outro? Bem pensado, senhor coelho, bem pensado. – Disse o engenheiro olhando fixamente o coelhinho.
- Então sempre é possível?
- Claro. Fique sossegado. Vamos deixar várias passagens e de vários tamanhos, para coelhos, raposas, javalis, ouriços… toda a bicharada passará em lugar seguro para não atrapalhar os comboios. – Sorriu.
Coelho Dourado agradeceu e saiu dali muito contente e mal chegou junto do grande castanheiro, deu a novidade a todos os animais que o esperavam ansiosamente. Todos admiraram a valentia de Coelho Dourado. Até o lobo.
O tempo passou. Veio o verão, o outono e outro inverno frio e o vale parecia adormecido. Só os homens não paravam. Traziam ferros e madeira, brita, fios e as linhas já brilhavam pela montanha nos dias de sol. Brevemente as locomotivas passariam apressadas a rebocar carruagens e vagões de gente e mercadorias para a grande cidade.
Os anos passaram.
Coelho Dourado e Coelho Malhado são agora os mais velhos de Vale das Casas. Também há cada vez menos pessoas. Os meninos foram todos para a cidade grande. Os velhos perderam o apetite. O lobo já não costuma estar sentado na sua pedra azulada e cheia de musgo macio. Coelho Dourado não desiste e todos os dias dá o seu passeio em segurança até à estação do Vale das Casas.
- Onde vais? – Pergunta-lhe Coelho Malhado.
- Ver passar os comboios. – Responde ele sorridente.
Ambos sorriem, por sentirem que são os únicos que partilham lindas histórias do Vale das Casas.

Campesino Sarças

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013


Elegia para duas estrelas

Cedo, como quem corta feno antes do tempo, vos apartaram
De nós que, esperando que tarde a nossa hora, choramos.
Mas continuareis aqui

Em cada estrela vizinha
Em cada raio de sol eterno, em cada nuvem passageira
Em cada orvalho transparente, em cada brisa livre
Em cada manhã que raia, em cada tarde lenta
Em cada dia preenchido, em cada noite vaga
Em cada nota certa, em cada silêncio leve
Em cada beijo doce, em cada abraço apertado
Em cada sorriso aberto, em cada gesto pacífico
Em cada passo firme, em cada palavra revoltada
Em cada verdade cristalina, em cada erro desfeito
Em cada multidão distraída, em cada solidão preenchida
Em cada viagem incógnita, em cada encontro inesperado
Em cada certeza maldita, em cada dúvida abundante
Em cada nada imenso.

E ainda que nos peçam um minuto de silêncio,
Por vós,
Nunca nos calaremos, porque o pecado
É o esquecimento.

JM 
31 janeiro 2013